sábado, 1 de janeiro de 2011

A Escola Italiana da Micro-História

Outro conjunto de historiadores da segunda metade do século XX, e que perdura até hoje, permitirá que analisemos uma outra situação. Trata-se do caso de uma "Escola" que se estabelece não no interior de um paradigma teórico, mas no interior de uma modalidade histórica ou na conexão entre duas ou mais modalidades históricas.

Uma modalidade histórica - que em nossa conceituação chamaremos de "campo histórico" - corresponde a uma espécie de especialização ou direcionamento no interior da prática historiográfica. No próximo bloco de textos, definiremos o que é um "campo histórico", e também discutiremos diversos "campos da história" - tais como a História Política, a História das Mentalidades, a História Cultural, a História Econômica, e a própria Micro-História, para dar apenas alguns exemplos de campos históricos.

"Campo Histórico" é um conceito que também se agrega aos esforços de trazer uma identidade ao trabalho dos vários historiadores. Abordamos este tema no livro O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2011, 8a edição). Neste livro, ressaltamos que os diversos trabalhos historiográficos não se localizam proipriamente no interior de um único campo histórico; geralmente, eles se situam em uma conexão de campos históricos. Posso desenvolver um trabalho que se situe na confluência da História Política, da História Cultural, e da História Oral, por exemplo. Mas deixaremos para desenvolver melhor esta idéia mais adiante (ver também http://ning.it/dI096W).

Por ora, o importante é salientarmos o fato de que, nas últimas décadas do século XX, surgiu na Itália um grupo de historiadores que desenvolveu uma perspectiva nova, uma nova maneira de fazer a História. Tratava-se de reduzir a escala de observação do historiador para enxergar os processos históricos não mais à distância, como ocorria com os modelos mais generalizantes da História Econômica trabalhada com a perspectiva de uma História Serial, ou ainda com as teses elaboradas de acordo com o modelo braudeliano influenciado pelo Estruturalismo. Com a Micro-História, propunha-se observar de perto a vida cotidiana, as redes de relações interindividuais, os detalhes e indícios que muitas vezes passavam desapercebidos, o impacto dos grandes processos históricos na vida concreta dos indivíduos, para além de observar com inusitado interesse o indivíduo anônimo que muitas vezes era apagado da história tradicional.

Essa nova maneira de trabalhar ficou conhecida como "Micro-História", e privilegiava a análise intensiva das fontes. Carlo Ginzburg se referiu a este novo modelo como um "paradigma indiciário", mais próximo do modo de trabalho dos investigadores criminais, dos psicanalistas, ou dos médicos que buscam compreender a doença através da análise intensiva dos sintomas por ela produzidos (1991, p.143-179). Com a Micro-História, as trajetórias e histórias de vida de indivíduos anônimos podiam adquirir especial interesse, mas não simplesmente para resgatar estas vidas anônimas, mas sim porque elas poderiam revelar aspectos menos evidentes de grandes processos ou acontecimentos históricos. Para utilizar uma metáfora que evoquei no meu livro "O Campo da História" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição), a Micro-História buscava "enxergar algo do Oceano a partir de uma gota d'água". A "gota d'água" podia ser um indivíduo obscuro, uma pequena vizinhança, um ritual exótico, uma corriqueira prática social, o entrelaçado formado pelas vidas dos habitantes de uma pequena aldeia, ou mesmo um inventário mais cuidadoso de práticas sociais que permitisse reapreender parte significativa de toda uma cultura mais ampla.

Não foi por acaso que os micro-historiadores, particularmente interessados nesta leitura intensiva das fontes e na apreensão de detalhes significativos que pudessem revelar algo que escapava da macro-história tradicional, tenham chamado atenção para a riqueza de determinadas fontes como os processos de inquisição e os processos criminais. Fontes como estas punham em diálogo inúmeros agentes sociais (através das figuras do réu, dos acusadores, das testemunhas, dos investigadores) que normalmente não teriam voz na documentação oficial. Carlo Ginzburg, um dos mais notórios micro-historiadores italianos, pôs-se a seguir através de fontes processuais - no livro "O Queijo e os Vermes" - um obscuro moleiro italiano do século XVI que havia sido perseguido, processado e condenado pela Inquisição. Queria enxergar através deste moleiro, ou melhor - através do processo inquisitorial que a ele dava visibilidade - questões culturais de alcance mais amplo, bem como aspectos relacionados à circularidade entre âmbitos culturais diversificados.

É importante perceber que a Micro-História logo se difundiu para além dos círculos italianos, e transformou-se em uma nova modalidade historiográfica. Na verdade, esta nova maneira de trabalhar também já começava a ser experimentada em outros países, e deve-se ter cuidado em atribuir a origem da Micro-História ao círculo de historiadores aos quais nos referiremos como "Escola dos Micro-Historiadores Italianos". Mas o fato é que estes historiadores italianos abraçaram esta nova perspectiva - a de uma "micro-História que frequentemente vinha combinada ou com a História Cultural, ou com a História Política, ou mesmo com a História Econômica - e, a partir desta nova pespectiva, passaram a colocar em prática um novo programa de ação. Tinham também a sua revista, os "Cadernos Históricos". Apresentavam-se em eventos, organizavam grupos de discussão, dialogavam com bastante frequência uns com os outros, e é por isto que podemos nos referir a eles como uma "escola".

Entre os micro-historiadores italianos, o nome mais conhecido no Brasil é o de Carlo Ginzburg (n.1939), cujos livros já estão todos traduzidos para o português. Outro nome importante,e igualmente conhecido no Brasil, é o de Giovanni Levi (n.1939). Pode-se citar ainda Edoardo Grendi, um autor importante para a elaboração de conceitos valiosos para a Micro-História. A maioria dos micro-historiadores italianos que constituiu uma "ecola historiográfica" a partir da revista "Quaderni Historici", incluindo Ginzburg e Giovanni Levi, está ainda bem atuante, e publicando obras importantes que têm renovado a perspectiva da Micro-História.

Deixaremos para esclarecer a modalidade da "Micro-História" mais adiante, mas desde já podemos remeter a um artigo publicado sobre o assunto:
http://ning.it/e5QWwj
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[BARROS, José D'Assunção. Sobre a Feitura da Micro-História. Opsis.]



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Outras indicações para leitura:

BARROS, José D'Assunção. "Micro-História" in O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.152-179.

BARROS, José D'Assunção. "O olhar micro-historiográfico no Brasil". Revista do IHGB, a-165, n°424, jul/set. 2004.

GINZBURG,Carlo. “O inquisidor como antropólogo” In A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991 [original: 1989]

GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In Mitos, Emblemas, Sinais, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.143-179

GINZBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [original: 1975]

LEVI, Giovanni. "Sobre a Micro-História" in BURKE,Peter (org.) A Escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.133-161.

LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana - escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

PESAVENTO, Sandra. “Esta história que chamam micro” In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Edurgs, 2000, p. 228-229.

REVEL, Jacques (olrg.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

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