sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Espaço, Tempo e Problema: completando a tríade do recorte de pesquisa

No texto anterior, vimos que recortar adequadamente o Tempo e o Espaço constitui uma operação fundamental para o trabalho do historiador que estabelece oseu âmbito de pesquisa. Gostaríamos de completar essas duas instâncias com uma outra, que é o "problema". Para entender esse terceiro aspecto, e sua importância, vamos iniciar o entendimento sobre o que é um "tema" de pesquisa.

No seu sentido mais lato, “tema” é um assunto qualquer que se pretende desenvolver. Quando se propõe que alguém escreva um texto escolar desenvolvendo o tema da “violência urbana”, espera-se que sejam abordados ou desdobrados alguns aspectos pertinentes a este tema. Depois de apresentar ao leitor o tema que pretende desenvolver, o autor pode começar nos sucessivos parágrafos a discutir aspectos específicos e diversificados que se desdobram deste tema, como “as causas sociais da violência urbana”, “as formas de prevenção ou de combate à violência urbana”, “a relação entre violência urbana e criminalidade”, e tantos outros.

Conforme veremos, “a violência urbana” pode ser um excelente tema para uma redação escolar, para um artigo de jornal, ou mesmo para um livro de divulgação junto ao grande público, mas não é um bom tema para uma dissertação de mestrado ou para uma tese de doutorado. Espera-se, de um trabalho acadêmico de tipo monográfico, ou em modelo de tese, que o tema tenha mais especificidade. Pode-se por exemplo tomar como tema monográfico “A violência urbana no Rio de Janeiro dos anos 90”, ou, mais especificamente ainda, “A interconexão entre a violência urbana e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro dos anos 90”. Ou, quem sabe, “Os discursos sobre a violência urbana nos jornais populares do Rio de Janeiro dos anos 90”. Pode-se dizer que, pelo menos no sentido acadêmico, “violência urbana” é apenas um ‘assunto’ um tanto vago, mas os temas acima propostos sim, seriam temas monográficos dotados de maior especificidade.

Uma “História da América”, por exemplo, está muito longe de ser um tema. É quando muito um ‘campo de estudos’ ou de interesses. A “Conquista da América” é mais específico, mas tampouco é ainda um tema. Na verdade é um ‘assunto’ que pode dar posteriormente origem a um tema mais delimitado, mas para isto terá de sofrer novos recortes. Pode-se estudar por exemplo “a alteridade entre espanhóis e nativos meso-americanos durante a Conquista da América, nas primeiras décadas do século XVI”. Este foi o tema escolhido por Todorov em uma de suas mais célebres obras. Nele já aparecem recortes ou dimensões mais específicos: (1) um espaço mais delineado que é a região central do continente americano; (2) um recorte de tempo que se refere às primeiras décadas do século XVI; (3) um problema que é o da “alteridade” (ou do ‘choque cultural’ entre aquelas duas civilizações distintas).

Em História, é fundamental que o tema de pesquisa apresente um recorte espacial e temporal muito preciso. Isto corresponde a focar um assunto ainda geral em um “campo de observação” mais circunscrito. Assim, não se estuda em uma tese de doutorado “o Islamismo”, embora este seja um excelente tema para um livro de divulgação visando o grande público. Pode-se começar por recortar este assunto extremamente vasto propondo-se uma pesquisa sobre o “Islamismo fundamentalista no Afeganistão do final do século XX”. Neste caso, já temos um recorte espacial (o Afeganistão) e um recorte temporal (final do século XX). Poder-se-ia recortar mais ainda o tema, impondo-lhe um campo problemático inicial como “as restrições à educação feminina no Islamismo fundamentalista do Afeganistão do final do século XX”. O ‘problema’* é este ‘recorte final’ – esta questão mais específica que ilumina um tema delimitando-o de maneira singular, e que traz em si uma indagação fundamental a ser percorrida pelo historiador.

Conforme já ressaltamos anteriormente, a historiografia de hoje exige temas problematizados, sobretudo nos meios acadêmicos. Seriam bons temas para a “História-Problema” de a partir do século XX recortes como ... “a alteridade entre espanhóis e nativos meso-americanos nas primeiras décadas da Conquista da América”, “as restrições à educação feminina no Islamismo Afegão de fins do século XX”, “a dessacralização do poder público durante a Revolução Francesa” (e não simplesmente “A Conquista da América”, “O Islamismo Afegão” ou “A Revolução Francesa”).

Ainda mais especificamente, pode-se dizer que um “problema de pesquisa” corresponde a uma questão ou a uma dificuldade que está potencialmente inscrita dentro de um tema já delimitado (resolver esta questão ou esta dificuldade é precisamente a finalidade maior da pesquisa). O “problema” tem geralmente um sentido interrogativo. Retomando-se o tema da “Alteridade na Conquista da América”, poderíamos dele extrair a seguinte indagação: “O Choque Cultural foi vivenciado de formas distintas por conquistadores espanhóis e por conquistados meso-americanos? Ou, ainda, “qual a contribuição do Choque Cultural para a implementação de uma conquista espanhola da Meso-América tão rápida e com um número tão reduzido de homens?”.
Dentro do tema do “Islamismo Afegão”, poderíamos por exemplo destacar o seguinte problema em forma de indagação: “quais as funções sócio-políticas que motivaram a restrição à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX”? Ou, ainda, “que estratégias de resistência foram desenvolvidas pelas mulheres afegãs diante das restrições à educação impostas pelo Islamismo talibã no final do século XX”?

Note-se ainda que um problema não precisa estar necessariamente escrito sob a forma interrogativa. O seu sentido é que precisa ser interrogativo. Assim, se declaro que o meu problema corresponde às “funções sócio-políticas que teriam motivado a restrição à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX”, já está embutida aí uma indagação, mesmo que eu a apresente camuflada sob uma forma redacional declarativa.

A incorporação de uma problemática é fundamental para a História hoje que se escreve nos meios acadêmicos e no âmbito da prática historiográfica profissional. Qualquer gênero historiográfico – da história das civilizações à biografia – pode ser percorrido a partir de um problema.

O tema por outro lado, não precisa ser atravessado por um problema único. Ele pode ser perpassado por um “campo de problemas” ou por uma problemática que se desdobra em duas ou três indagações mais específicas. Se proponho, sem uma maior especificação, uma tese sobre “a repressão à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX’, abro um claro espaço para alguns problemas interligados. Nenhuma repressão é gratuita. Freqüentemente ela tem bases políticas, econômicas, imaginárias, religiosas ou consuetudinárias. Assim, uma primeira questão, ou um primeiro problema que se cola a este tema, refere-se precisamente às motivações sociais que produziram o fenômeno da repressão à educação feminina no Afeganistão. Por outro lado, nenhuma repressão existe sem gerar alguma forma de resistência. Estudar a repressão à educação feminina é indagar também pelas formas de resistência que as mulheres afegãs desenvolveram em relação a esta prática no período considerado. Tem-se aí um segundo problema, que pode ser examinado em contraponto ao primeiro. Outro problema implícito poderia se referir ao caráter processual deste fenômeno. Porque ele eclode no final do século XX? Qual a história deste padrão repressivo? O tema proposto, como se vê, abre-se não só a um único problema, mas a um campo de problemas que possivelmente apresentam uma interligação a ser decifrada pelo próprio pesquisador.

Sintetizando o que vimos até aqui, pode-se dizer que um tema bem delimitado de pesquisa histórica deve trazer muito claramente a definição de três dimensões fundamentais: o recorte espacial, o recorte temporal, e o problema (Quadro 1). Estas três dimensões devem aparecer adequadamente explicitadas no capítulo “Delimitação Temática” do Projeto de Pesquisa (ou, se este capítulo não está previsto, na própria “Introdução” do Projeto). Além de serem dimensões necessárias para delimitar mais adequadamente o tema, produzindo um verdadeiro “recorte temático”, são estas dimensões que tornarão a pesquisa efetivamente viável.

Não posso estudar todos os países muçulmanos do final do século XX (ausência de recorte espacial mais circunscrito), nem o Afeganistão em todas as épocas históricas (ausência de recorte temporal), nem todos os problemas presentes no Islamismo Afegão do final do século XX (ausência de um problema singularizado). Cada um destes três recortes ou dimensões de recortes (espaço, tempo e problema) significa dar um passo adiante na conquista da viabilidade para a realização da pesquisa histórica proposta. Significa também um passo adiante no processo de vencer a dispersão temática e encontrar uma concentração temática bem definida. Sobre este tripé repousa um tema bem delimitado, pelo menos no que se refere aos domínios da Ciência Histórica e mais especificamente dos textos monográficos de História.


[o presente texto foi adaptado do capítulo "Delimitação Temática" do livro "OProjeto de Pesquisa em História" (2005).

[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição]

Um comentário:

  1. Queria saber sobre Tempo e Espaço histórico de um jeito simples. Esse blog é muito bom, mas parece-me que e voltado apenas para pesquisadores na área.

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