sábado, 8 de janeiro de 2011

Fonte Histórica (6). Analisando Fontes Dialógicas

Entenderemos como ‘fontes dialógicas’ aquelas que envolvem, ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diversas. O dialogismo de uma fonte é ao mesmo tempo um limite e uma riqueza: o historiador deve aprender a lidar com isto. No limite, é claro, toda fonte – como todo texto – comporta uma margem de dialogismo, pois se acompanharmos as reflexões de Mikhail Bakhtin, em seu ensaio 'Estética e Criação Verbal', não há rigorosamente falando textos que não estejam mergulhados em uma rede de intertextualidades, isto é, em um diálogo com outros textos. O ato mesmo de analisar um texto, assevera-nos Eliseo Verón em seu livro A Produção do Sentido, já introduz algum tipo de dialogismo: pois não é possível analisar um texto em si mesmo, e mesmo que sem perceber o analista está comparando sempre o texto de sua análise com outro texto. Mas não é deste tipo de dialogismo que estaremos falando neste momento, e sim das fontes históricas que apresentam uma forma mais intensa de dialogismo em decorrência da própria maneira como estão estruturadas, ou em função dos próprios objetivos que as materializaram.

Fontes Dialógicas por excelência, entre várias outras, são os processos criminais e processos inquisitoriais – que envolvem depoimentos de réus, testemunhas e acusadores, mas também a figura destes mediadores que são os delegados de polícia e os inquisidores, e também os advogados para o caso dos processos jurídicos modernos. Também são fontes, além de dialógicas, “intensivas” – fontes que buscam apreender e dar a perceber muitos detalhes, particularmente os que passariam despercebidos ou aos quais em outra situação não se dá importância (lembremos os investigadores criminais vasculhando as latas de lixo). Também os processos apresentam um esforço de compreender a fala de um outro, de dar a compreender esta fala, embora também envolvam a manipulação da fala.

Para o Brasil do período colonial, constituem fontes dialógicas de grande porte os Livros de Devassas, produzidos pelas Visitações do Santo Ofício da Inquisição. Alguns historiadores brasileiros os utilizaram amplamente, tal como Laura de Melo e Souza, em sua investigação historiográfica intitulada 'O Diabo e a Terra de Santa Cruz' (1994). Tal como veremos oportunamente, fontes como estas – dada a sua intensividade, ou a sua capacidade de apreender e expor ao pesquisador um grande número de detalhes e de relações dialógicas inter-individuais em um contexto intensificado – proporcionam a rara possibilidade de se empreender um apurado rastreamento do cotidiano, do imaginário e dos ambientes de sociabilidade relativos. Da mais recôndita intimidade do lar e das secretas conversas das alcovas à exposição da agitada vida humana que transita nas ruas, a leitura de processos como estes pode ir aos poucos descortinando os ambientes de sociabilidade, e ir revelando não apenas a vida concreta e cotidiana – com seus modos de alimentação, indumentária, cultura material, hábitos e fórmulas de comunicação – mas também a vida imaginária e as formas de sensibilidade: os medos, crenças, esperanças, invejas, desalentos e desesperos.

O mesmo ocorre para os processos criminais do período moderno. Importante se ter em vista que, nestes casos, é de menor importância chegar a conclusões sobre as razões de um crime ou a culpabilidade do réu. A função do historiador não é a de desvendar crimes – tarefa do delegado de polícia – nem tampouco emitir julgamentos sobre o mesmo. Um processo, como uma devassa inquisitorial, permite rastrear a vida de testemunhas, vítimas e réus. Através do registro intensivo deste tipo de fontes, o historiador pode recuperar o dia-a-dia de anônimos do passado aos quais não teria acesso por outros meios. Em seu texto “O Dia da Caça”, um dos pioneiros do Brasil no que se refere a esta abordagem, o sociólogo José de Souza Martins se põe a acompanhar os passos do réu no seu dia-a-dia, seguindo ele mesmo os passos do delegado que tenta recuperar “o percurso trágico do criminoso, nos dias e horas que antecederam o crime” (MARTINS, 1992, p.301). De nossa parte, podemos acompanhá-lo, como leitores, na sua paciente montagem de um mapa que revela os vários trajetos diários do operário que é acusado do crime. É esta instigante interposição de mediadores – leitor, autor, delegado, depoentes, personagens da cena-crime – cada um seguindo os passos do outro em uma autêntica arqueologia de textos que se recobrem uns aos outros, o que traz a estas fontes uma espécie de ‘dialogismo transversal’. Mas é também na multiplicação das vozes no plano sincrônico – correspondente no contexto mais imediato do próprio crime à contraposição das vozes do réu, das testemunhas, das vítimas – que iremos encontrar o dialogismo final, constituinte da trama que corresponde à última camada arqueológica que o processo criminal nos oferece.

O dialogismo presente nas fontes processuais, as diferentes versões que através delas se conflituam, as visões de mundo que os atores sociais encaminham uns contra os outros, as redes de rivalidades e solidariedades que daí emergem, as identidades e preconceitos, é todo este vasto e dialógico universo – não apenas capaz de elucidar as relações inter-individuais, como também de esclarecer a respeito das relações de classe – o que se mostra como principal objeto de investigação para a análise micro-historiográfica que se torna possível a partir deste tipo de fontes .
Além dos processos criminais, jurídicos e inquisitoriais, há vários outros tipos de fontes dialógicas. Existem inclusive as fontes de ‘dialogismo implícito’, aquelas que dão voz a indivíduos ou grupos sociais pelas suas margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus silêncios e exclusões. Assim, por exemplo, o período do escravismo colonial no Brasil conhece a prática do estabelecimento de “irmandades” (de homens negros, pardos, brancos, escravos ou libertos, de portugueses ou brasileiros). Análogas às confrarias medievais no que se refere ao fato de que acomodavam dentro de si grupos de indivíduos em quadros auxiliares de sociabilidade e solidariedade, elas cortavam a sociedade a partir de um novo padrão. O que nos interessa para falar do dialogismo implícito são as suas cartas de compromisso, as suas atas, os documentos que revelam seus procedimentos de inclusão e de exclusão. No interior da população africana ou afro-descendente que havia sido escravizada, elas deixam entrever os diversos grupos identitários que se escondem sob o rótulo do “negro”.

João José Reis, que as estudou em detalhe, observa o estabelecimento de uma discreta arena de disputas inter-étnicas na Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, na Bahia de 1686. Dela participavam irmãos e irmãs angolanos e crioulos (negros nascidos no Brasil) na época de seu primeiro compromisso. “Embora sem explicitar isto, previa-se a entrada de gente de outras origens, inclusive os brancos e mulatos, mas só crioulos e angolas eram elegíveis, em números iguais, a cargos de direção” (REIS, 1996, p.14). Já na Irmandade do Rosário da Rua de João Pereira, a associação se estabelecia entre benguelas e jejes. O que nos revelam estas fontes em termos de vozes sociais? Através delas, dos seus termos de compromisso e documentação corrente, os grupos sociais e as identidades são postas a falar, mesmo as que são silenciadas através da exclusão. O poder é partilhado por grupos específicos dentro da escravaria mais ampla. Algumas outras identidades são aceitas, mas em um segundo plano; outras são excluídas. As redes de solidariedade e as rivalidades terminam por falar. Mesmo quando silenciados através da exclusão, alguns grupos deixam soar a sua voz, nem que seja para dar a entender que são odiados, temidos, desprezados, ou que, de sua parte, também odeiam e desprezam. O grupo social aparentemente unificado pela cor, como queria o branco colonizador, revela através do dialogismo implícito a sua pluralidade de vozes internas.

Vamos nos referir em seguida à fontes de ‘dialogismo explícito’, como é o caso daquelas fontes nas quais um determinado agente ocupou-se de pôr por escrito as falas de outros. Elas são dialógicas não apenas porque são várias estas “falas de outros”, mas também porque o mediador, o compilador da fonte ou o agente discursivo que elabora um texto sobre o texto, representa ele mesmo também uma voz (quando não um complexo de várias vozes, já que através do mediador pode estar falando também uma instituição, uma prática estabelecida, uma comunidade profissional, para além de sua própria fala pessoal). Com base nestes aspectos, podemos definir as fontes relativas ao “dialogismo explícito” como aquelas que são atravessadas de maneira mais contundente por um mediador que tem a consciência de estar situado diante de uma alteridade, diante da necessidade de uma mediação, de uma ‘tradução do outro’ que precisará ser feita em si mesmo e depois, possivelmente, oferecida a novos leitores.

Os relatos de viagem, por exemplo, comportam a sua margem de dialogismo. Pensemos naqueles viajantes europeus que estiveram percorrendo a África, a América do Sul e particularmente o Brasil – pois essa era uma nova moda romântica bastante em voga no século XIX. Estes viajantes entram em contato com culturas que lhes são totalmente estranhas, e fazem um esforço sincero de transmitir a um leitor – que eles idealizam sentado confortavelmente em uma residência européia – as estranhezas que presenciaram, as bravatas e desafios que tiveram de enfrentar por serem europeus aventureiros em terras tropicais e selvagens, ou em cidades rústicas, habitadas por novos tipos sociais tão desconhecidos deles como de seus leitores. Marco Pólo, no seu Livro das Maravilhas, escrito no século XIII, já trazia à literatura o seu próprio relato de viagens, nos quais descortinava aos seus leitores europeus um mundo completamente distinto de tudo o que eles até então haviam visto. A China e outras terras do oriente surge nos seus relatos com toda a sua imponência dialógica, beneficiando os europeus de sua época de um choque de alteridade que mais tarde lhes seria muito útil, quando precisaram submeter as populações incas, maias e astecas nas Américas do século XVI.

Exemplos particularmente interessantes de fontes dialógicas, de que não trataremos neste momento, são as organizações mediadas de “falas dos vencidos”. É o caso dos depoimentos de astecas que sofreram impactos da Conquista da América, no século XVI, e que foram elaborados pelos próprios astecas sob a orientação do padre jesuíta Sahagún. Estas fontes, habitualmente conhecidas como “os informantes de Sahagún’, pretendem dar voz aos astecas que foram vencidos e massacrados pelos conquistadores espanhóis liderados por Hernán Cortez, no século XVI. Ao serem elaboradas tanto no idioma nativo como em espanhol, estas fontes não apenas procuram dar voz a uma cultura, mas também superpõem-lhe um outro texto, uma outra cultura e uma outra visão de mundo: a do padre jesuíta que, por mais bem intencionado que estivesse em dar voz aos vencidos, não tem como extrair-se, a si mesmo, do discurso dos astecas a cujas falas ele traz uma organização.

Antes de prosseguirmos, podemos nos perguntar: o que se precisa ou pode-se aprender com estes tipos de fontes que são as ‘fontes dialógicas’. Diremos inicialmente que aqui será necessário um novo talento: o “talento arqueológico”. Não nos referimos porém à capacidade de lidar com as diferentes camadas de terra, mas a algo ainda mais sutil: a habilidade de decifrar diferentes camadas de filtragens. O talento de perceber uma coisa a partir da outra é desde já, de alguma maneira, uma habilidade polifônica (a mesma que se torna necessária ao ouvinte de música que se põe a escutar composições musicais constituídas por várias vozes que avançam paralelamente, uma por sobre a outra, como nas composições de Johan Sebastian Bach).
As fontes produzidas por missionários, como o padre jesuíta Sahagún, sempre colocam em pauta o dialogismo, e este também será o caso das fontes que foram trabalhadas pelo etno-historiador Richard Price em seu livro Alabi’s World (1990), um texto que recebeu de Eric Hobsbawm alguns interessantes comentários críticos sobre o uso de fontes históricas – particularmente sobre as fontes dialógicas – no texto intitulado “Pós-Modernismo na Floresta”. Vale a pena refletir sobre este texto, e também sobre os comentários de Hobsbawm, pois ele nos servirão como ponto de partida para elucidar alguns cuidados e potencialidades metodológicas envolvidos no trabalho com as fontes dialógicas.

O estudo de Richard Price no ensaio em questão dirige-se às sociedades saramakas, que foram constituídas no Suriname nos séculos XVIII e XIX a partir de quilombolas que conseguiram se apartar do Sistema Escravista e construir uma sociedade em novas bases no interior daquela região sul-americana. Os suramakas, os “negros da mata” do Suriname, não eram cristãos na sua maioria; mas com eles tiveram de interagir os missionários Morávios, nas suas tentativas de evangelização. Estes últimos produziram extensa documentação a respeito da sociedade saramaka da qual se utilizou Richard Price, com vistas à elaboração de sua pesquisa e análise. Dois problemas surgem, e aqui o tomaremos como exemplificação acerca de problemas a serem enfrentados pelos historiadores de hoje no trato com as suas fontes. Os irmãos morávios, conservadores e ultra-religiosos, deixam inevitavelmente transparecer nas fontes o seu fracasso em compreender aquela estranha sociedade saramaka que pretendiam catequizar. Eles enxergam o mundo saramaka a partir do seu próprio filtro, da sua própria visão de mundo, e, ainda que sinceros no seu esforço de compreender a alteridade com a qual se defrontam, enfrentam a óbvia dificuldade de estarem presos a horizontes mentais que não lhes permitem compreender adequadamente certos aspectos da sociedade saramaka.

Por outro lado, um outro filtro deve ser enfrentado pelo historiador que hoje toma as correspondências dos missionários morávios como fontes para compreender as sociedades saramakas do Suriname da segunda metade do século XVIII. Tal como Hobsbawm assinala, e colocaremos suas palavras entre aspas, para os pesquisadores modernos “a visão de mundo de fanáticos carolas como os morávios, com seu culto sensual e quase erótico das chagas de Cristo, é certamente menos compreensível que a visão de mundo dos ex-escravos” (HOBSBAWM, 1990, p.47-48). Desta maneira, e apenas destacamos esta obra a título de exemplificação, o problema historiográfico de análise das fontes assim se coloca em um dos aspectos para o qual mais devem estar atentos os historiadores de hoje: lidar com uma Fonte (ou constituí-la) implica em lidar com filtros, com mediações, inclusive as que fazem parte da própria subjetividade e condições culturais do pesquisador que examina o outro, a partir do outro.

Considerações análogas são desenvolvidas por Carlo Ginzburg em seu famoso texto “O Historiador como Antropólogo”, escrito em 1989. Toma-se como ponto de partida o mesmo problema metodológico enfrentado por Richard Price na obra citada anteriormente: trata-se de dar um uso historiográfico a registros escritos de produções orais – no caso específico de Carlo Ginzburg, as fontes inquisitoriais do início da Idade Moderna. As fontes inquisitoriais – que nos trabalhos de Ginzburg adquirem um novo sentido ao se ultrapassar o antigo enfoque nas “perseguições” em favor do enfoque no discurso – apresentam precisamente a especificidade de serem mediadas pelos “inquisidores”. Ou seja, para se chegar ao mundo dos acusados, é preciso atravessar esse filtro que é ponto de vista do inquisidor do século XVI; é necessário empreender o esforço de compreender um mundo através de outro, de modo que temos aqui três pólos dialógicos a serem considerados: o historiador, o “inquisidor-antropólogo”, o réu acusado de práticas de feitiçaria.

O limite da fonte – o desafio a ser enfrentado – é o fato de que o historiador deverá lidar com a “contaminação de estereótipos”. Mas uma riqueza da mesma documentação é a forma de registro intensivo que é trazida pelas fontes inquisitoriais – uma documentação atenta aos detalhes, às margens do discurso, e fundada sobre um olhar microscópico – isto, para além do forte dialogismo presente, seja de forma explícita ou implícita. Quanto à estratégia metodológica que aproxima inquisidores do século XVI e antropólogos modernos, a que dá o título ao artigo, é exatamente a de traduzir uma cultura diferente por um código mais claro ou familiar (GINZBURG, 1994, p.212).

O que nos ensina Ginzburg com o seu trabalho historiográfico sobre estas fontes, e com suas reflexões teóricas sobre as mesmas? Antes do mais, fica claro que o historiador deve formular indagações sobre os seus mediadores, para compreender tanto os seus “filtros” como para fazer a crítica de autenticidade e veracidade relacionada à sua mediação dos depoimentos dos réus. Fica claro para o autor, e esta é já uma resposta à indagação inicial, que existe no inquisidor uma vontade real de compreender, o que o leva a inquirir o detalhe e a dar efetiva voz ao acusado. Ao mesmo tempo, a este inquisidor – em que pese o seu desejo de apreender o ponto de vista do réu – nada resta senão tentar entender os depoimentos ou a cultura investigada adaptando-os às suas próprias chaves e estereótipos. A fonte inquisitorial, por estes dois fatores, torna-se intensamente dialógica (isto é: ela envolve o diálogo entre muitas vozes sociais).

O texto “O Inquisidor como Antropólogo” (1989) inicia-se com um pequeno balanço de Carlo Ginzburg sobre a apropriação historiográfica das fontes da Inquisição. Um historiador, ao aproximar-se de suas fontes, não se obriga necessariamente a historiar o uso historiográfico que até aquele momento foi feito de suas fontes, mas em todo o caso esta poderia ser uma boa recomendação metodológica. Estender um olhar sobre a historiografia que precede o próprio historiador com relação ao seu tema e ao uso historiográfico de suas fontes, permite que o historiador aprofunde a consciência histórica sobre si mesmo: saber em que ponto situa-se o seu trabalho, ao lado e contra que campos de possibilidades, diante de que redes intertextuais e inter-historiográficas. Os modos como pretende se aproximar de suas fontes repete experiências anteriores, aprimora-as, inverte-as, recusa-as em favor de novas direções?

O Quadro 3 propõe-se a sugerir um roteiro para o tratamento de fontes dialógicas. Os itens indicados não necessariamente precisam ser percorridos como etapas, e não apresentam uma ordem fixa; alguns são mesmo opcionais. O primeiro item que comentaremos é um destes que apresentamos como alternativo, mas de todo modo o deixaremos como sugestão. Trata-se de traçar, tão dedicadamente quanto possível, um pequeno histórico do tratamento historiográfico até então dispensado às fontes que agora tomamos como nosso corpus documental. As perguntas colocadas acima, em nosso entender, trazem maior consciência historiográfica sobre o tema. Ela são colocadas para a historiografia, e não para as próprias fontes ou para a realidade vivida a que se referem as fontes – o que será feito em outros itens.

Vamos retomar um pouco o texto de Ginzburg, no sentido de aprender um pouco com este micro-historiador italiano. Ele nos conta logo no início do artigo que é (surpreendentemente) tardia a descoberta dos arquivos da Inquisição para finalidades historiográficas (1994, p.203). Os primeiros historiadores da Inquisição se aproximaram da temática da Inquisição de uma perspectiva da ‘história da repressão inquisitorial’; e foi sob a limitação imposta por este horizonte de expectativas que buscaram apreender as fontes que poderiam ser constituídas pelos processos da Inquisição – dezenas de milhares na Itália, e cerca de dois mil processos de julgamentos inquisitoriais só no Friuli, que foi o universo investigado por Ginzburg. Eram de um lado historiadores protestantes de período posterior, que desejavam iluminar o heroísmo de seus antecessores frente à perseguição católica; ou que estavam interessados em revelar traços da crueldade dos repressores que pertenciam à tradição adversária. De outro lado, os historiadores que assumiam a perspectiva de uma História da Igreja Católica eram compreensivamente relutantes em se aproximar historiograficamente daqueles processos, tanto porque lhes era algo penoso descortinar o papel de seus irmãos de fé como torturadores, ainda que de hereges, como porque tendiam ou pretendiam “minimizar o Impacto da Reforma”, para aqui retomar uma observação do próprio Carlo Ginzburg (1994, p.204). Por fim, os historiadores liberais, que não se posicionavam religiosamente ou eclesiasticamente, também não se interessavam pelos processos de inquisição. Ginzburg nos explica por que:


“Sempre se considerou que as provas de bruxaria, fornecidas pelos julgamentos, eram um misto de extravagâncias teológicas e superstições populares. Estas eram, por definição, irrelevantes; aquelas podiam ser mais facilmente encaradas nos tratados demonológicos. Para os estudiosos que pensavam que o único tema histórico ‘válido’ era a perseguição, e não o seu objeto, percorrer as longas e muito provavelmente repetitivas confissões dos homens e das mulheres acusados de feitiçaria era, de fato, uma tarefa fastidiosa e inútil” (GINZBURG, 1994, p.204)


Ginzburg coloca com particular clareza o problema, neste pequeno balanço inicial da ‘história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais’. Esta história – paralela a história de como a bruxaria “passou da periferia para o centro das questões históricas ‘válidas’” (GINZBURG, 1994, p.205) – mostra-nos nos seus primeiros momentos um interesse meramente eclesiástico (a favor ou contra a Reforma). Trata-se de uma apropriação historiográfica das fontes que é realizada ainda da perspectiva de uma história eclesial – de uma História da Igreja, examinada por um lado ou pelo outro – e não ainda da perspectiva de uma história religiosa, de uma história da religiosidade, e muito menos de uma ‘história do discurso religioso’, para não falar das possibilidades de uma ‘história cultural’ que toma estas fontes inquisitoriais como um caminho interessante para indagar sobre muitas outras coisas para além da religião ou das práticas religiosas em si mesmas.
O que nos mostra Ginzburg no seu balanço é que uma nova pergunta ou uma nova ênfase podem abrir significativos e inusitados caminhos para a exploração de novas potencialidades em uma Fonte ou tipo de fonte. Na história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais, a estagnação ou o desinteresse dos primeiros tempos só puderam ser efetivamente superados com o deslocamento do enfoque na ‘perseguição eclesiástica’ para o enfoque no discurso, no cotidiano, nas práticas culturais, bem como nos novos agentes históricos (os que entretecem uma história vista de baixo) – enfim, toda uma série de novas perspectivas que motivava a fazer com que o olhar historiográfico fosse deslocado da perseguição para o depoimento dos acusados. Nesta virada para um novo enfoque se insere o seu próprio trabalho.

Um balanço como o realizado acima – que de resto recomendamos como procedimento útil para o trabalho com qualquer tipo de fonte historiográfica, e não apenas para as dialógicas – permite que um historiador adentre o seu tema em maior nível de consciência historiográfica. Por vezes uma leitura como esta sobre a produção historiográfica anterior voltada para o tema, ou em torno das fontes escolhidas, permite que se tenha uma maior clareza sobre o que se ganha e o que se perde com a adoção de uma ou outra perspectiva. Colocar-se diante (e dentro) da história de uma produção historiográfica ajuda a escolher o caminho adequado, com plenos benefícios para a pesquisa. Por isto indicamos este procedimento como um item alternativo, mas a nosso ver importante.

O segundo item recomendado em nosso roteiro, no topo do hemisfério superior do esquema proposto, e que na verdade é o ponto de partida dos itens obrigatórios, corresponde à ‘descrição das fontes’. Sua forma textual, seu suporte material, o idioma, o tipo de vocabulário, o padrão de conteúdo, trata-se aqui de se aproximar de uma compreensão o mais abrangente e complexa quanto possível das próprias fontes, o que de resto prosseguirá nos itens seguintes. Se tratamos com processos inquisitoriais do século XVI, teremos que nos familiarizar com a estrutura do processo inquisitorial, compreender seu dialogismo, sua dinâmica interna, os tipos obrigatórios que o articulam (acusadores, investigadores, réus, testemunhas), e ainda as práticas que o estabelecem (investigação, inquérito, eventualmente a tortura). Se utilizamos como fontes historiográficas os relatos de viagem, será preciso compreender o que são os ‘relatos de viagem’ como gênero literário realista, e também compreender especificamente estes relatos de viagem específicos que tomamos para nossas fontes. Quem é o emissor desta fonte, e de outros tipos de fontes? Genericamente, quem é o ‘viajante’, e especificamente quem é este viajante? A que público se destina um relato como este? A que práticas culturais este gênero de texto atende? Se é um processo – embora isto seja óbvio – que finalidade ele cumpre?
Questões como as envolvidas na ‘descrição das fontes’, remetem ao que já discutimos sobre a necessidade ou possibilidade de alguns textos serem examinados como “processos comunicativos”, o que envolve as figuras do emissor e do receptor, a existência de uma mensagem, os objetivos desta (comover, divertir, manipular, seduzir, persuadir, impor, esclarecer, mover, paralisar). Em se tratando de processos criminais ou inquisitoriais, documentação complexa que se articula em diversos tipos de texto e em diversos níveis, não se trata de compreender as instâncias de um processo comunicativo, mas sim compreender o papel de cada um dos seus agentes discursivos, e de perceber não propriamente uma mensagem, mas uma finalidade do processo como um todo pra depois, talvez por dentro, retornarmos as mensagens através dos depoimentos que instauram discursos específicos.

O terceiro item recomendado em nosso roteiro, logo em seguida a este, refere-se ao ‘contexto das fontes’. Para o caso das fontes de Richard Price sobre os saramakas, seria o caso de dar a si mesmo as adequadas possibilidades de entender as ‘condições de produção’ daquelas correspondências pessoais dos missionários morávios que foram tomadas pelo historiador americano como documentação central em seu trabalho. Se possível, é interessante levantar não apenas o contexto mais imediato das fontes, mas também a sua história como fonte: o contexto que as precede (uma prática dos missionários morávios de registrar relatos e se comunicar com suas bases através de correspondências deste tipo) e também a história posterior: como estas fontes chegaram até nós, que caminhos percorreram até encontrarem seu pouso mais estável em algum arquivo? Para o caso dos “Informantes do Sahagún”, seria o caso de nos aproximarmos da história de uma prática jesuítica, de verificar casos que precederam a experiência do jesuíta Sahagún junto aos astecas submetidos pelos conquistadores espanhóis. Se isto for possível, claro. Depois, verificar como estas fontes chegam até nós, historiadores atuais.

Há ainda o ‘contexto’ não da produção da fonte, mas dos fatos ou processos a que ela remete ou se refere. Se trata-se de um processo, teremos de esclarecer os aspectos que envolvem o crime ou a acusação de heresia: especificamente este crime ou esta acusação de heresia com a qual estamos lidando. Quem são os personagens envolvidos na trama? Que posição ocupam, uns em relação aos outros? Que relações de solidariedade e rivalidade emergem destas relações? Algumas destas perguntas serão preenchidas aos poucos, no decorrer da investigação historiográfica e da análise das fontes, mas apenas as situamos aqui como possibilidades para a constituição do contexto. Mais ainda, e mais importante, qual será o grande contexto? O que embasa esta sociedade e o que define os seus grandes horizontes, dos quais nenhum dos atores envolvidos pode escapar, por serem estes os horizontes intransponíveis de sua sociedade e de sua época? Começamos a lançar aqui as bases para entretecer uma história. Se há vários personagens envolvidos, talvez seja mesmo útil construir o contexto de cada um deles, se não aqui, ao menos no momento da investigação em que isto de fizer necessário.

De igual maneira, quando o que investigamos são as práticas ou as repercussões de uma prática, é preciso delinear também o contexto desta prática específica, e não apenas o dos atores sociais que estão com ela envolvidos, ou o contexto dos acontecimentos que tomaram forma através destas relações. A própria prática herdada de outras culturas, quando deslocada para uma nova sociedade, torna-se uma outra coisa, e precisa ser recontextualizada. Pensemos nas heranças medievais e modernas de práticas pagãs, nas sobrevivências das práticas mágicas e da alquimia no século XVIII. Ser um alquimista na era de Newton (e o próprio Newton tinha o seu lado alquimista), é algo bem distinto de ser um alquimista nos tempos medievais de Nicolas Flamel (1330-1418). Uma prática deslocada precisa ser recontextualizada, reinserida em seu “contexto total”.

A construção do “Contexto”, e eventualmente o que poderá ser entendido como uma “Recontextualização”, constitui uma etapa extremamente importante para qualquer tipo de fontes (e não apenas para as dialógicas). Em um artigo que será comentado mais adiante, Edward Palmer Thompson (1924-1993) chama enfaticamente atenção para a necessidade de reinserir as evidências, os discursos, as práticas ou os processos examinados em seu “contexto total”. Seu mote para a discussão desta questão, do qual mais adiante nos aproximaremos em maior nível de profundidade, é a crítica da sempre incorreta análise descontextualizada dos folcloristas que examinam rituais e práticas culturais como meras permanências de tradições anteriores, e a necessidade que deve ser perseguida pelos historiadores culturais de compreender estes mesmos rituais e práticas à luz das novas funções e usos correntes que estas práticas assumem em outras sociedades (THOMPSON, 2001, p.231). Um antigo ritual pagão deslocado para uma sociedade cristã industrial e para um ambiente urbano é já uma outra coisa, que não mais o que era nos seus tempos romanos. Com relação a esta preocupação historiográfica fundamental a que chamaremos de “recontextualização”, mais do que de uma “contextualização” – pois neste caso específico tratam-se de práticas que foram produzidas em uma configuração social mas deslocadas para outra – poderemos tomar emprestadas as irretocáveis palavras de Edward Thompson:


“O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico,uma ‘sobrevivência’, e são reinseridas no seu contexto total” (THOMPSON, 2001, p.238)

Retomado o nosso esquema de crítica documental, os próximos procedimentos referem-se já especificamente às fontes dialógicas. Enquanto os quatro procedimentos até aqui propostos referem-se a todos os tipos de fontes (e não apenas às narrativas, como também às seriais e informativas) – isto no sentido de que para toda fonte será útil recuperar a rede historiográfica que já a abordou, empreender a sua descrição tão complexa quanto possível, e adentrar os contextos tanto da própria produção da fonte como do processo a que ela se refere – já os procedimentos seguintes são especificamente voltados para o trabalho sobre as fontes dialógicas.

O quinto empreendimento que indicamos, refere-se à identificação e descrição da ‘polifonia interna das fontes’. Trata-se de identificar as várias vozes que compõem esta trama polifônica, situá-las em seus níveis arqueológicos (para utilizar a metáfora de Michel Foucault). Trata-se de compreender cada uma delas em um nível que se aproxima ou se afasta mais do historiador, perceber as mediações que lhes são interpostas. Trata-se ainda de entrever os seus diálogos, perceber como se situam umas em relação às outras não apenas nos termos da espacialidade arqueológica do discurso (os níveis de mediação), mas também como as diversas vozes interagem na polifonia textual. Lembraremos aqui o que é uma “polifonia” na teoria musical, campo do qual tomamos emprestada esta metáfora. A Polifonia é a modalidade de música, o método de apresentação musical, no qual diversas vozes soam juntas, sem que uma tenha precedência sobre as demais. Exemplos conhecidos são as fugas ou os corais de Johan Sebastian Bach e outros compositores barrocos e renascentistas, em cuja música há baixos, tenores, sopranos e contraltos, ou ainda nas composições em que diversificados instrumentos entoam melodias distintas. Uma fonte histórica ‘polifônica’ será aquela na qual se expressam efetivamente diversas vozes – por vezes explicitamente, através de um espaço que lhes é concedido para a fala; por vezes implicitamente, através do discurso de um outro que mesmo sem querer termina por permitir que outras vozes falem no interior de seu discurso. Trata-se de uma situação análoga à da jovem adolescente que vai ao psicanalista e na sua fala deixa escapar, diretamente ou através de atos falhos, a voz do pai, do irmão, da mãe, do namorado que a traiu, do professor por quem nutre paixões secretas.

Perceber polifonias no discurso requer sensibilidade, mais ainda do historiador, já que ele lida com planos polifônicos envolvendo várias épocas. Entre as várias vozes com as quais irá lidar está a sua mesma. É preciso não deixar que esta sufoque as vozes históricas sobre as quais tem a responsabilidade de trazer à vida, de recuperar a dimensão exata da sua música. É preciso evitar que a sua voz, com sua especificidade e seus limites, contamine as demais. Isso seria o “anacronismo” – o pecado máximo do historiador, segundo Lucien Febvre –, que corresponde a deixar inadvertidamente que a melodia específica da temporalidade presente tome o lugar das demais com seus ritmos e soluções melódicas específicas. Temos aqui a historiadora feminista que enxerga em Safo reivindicações que são apenas suas, ou o historiador revolucionário que quer enxergar em John Ball, ou ainda o historiador protestante que convoca para a sua causa reformista todos os hereges queimados pela Inquisição. Mas a voz do historiador existe; é preciso lidar com ela, deixar que também se expresse, para que não se caia na ilusão positivista que deslocava a melodia do historiador para a austera posição de um maestro protegido pela neutralidade científica.

Recomenda-se refletir, para as fontes dialógicas, sobre as várias vozes que adquirem vida através da investigação. Depois, agrupá-las segundo as afinidades, consoante critérios que só poderão ser definidos pelo problema histórico que está orientando a pesquisa e a reflexão historiográfica. Poderemos agrupar as vozes por classes sociais, mas também por relações de solidariedade, rivalidade ou preconceito em relação ao acusado que se senta no banco dos réus. Poderemos partilhá-los por gerações ou por gêneros, se o problema da pesquisa apontar para uma coisa ou outra. Poderemos criar critérios que combinem o gênero e as categorias profissionais, de modo a distinguir as mulheres operárias das que trabalham no comércio a varejo. Poderemos até mesmo criar um recurso para clarear o timbre de cada uma das vozes envolvidas, como fez Richard Price ao escolher um padrão tipográfico para cada um dos atores sociais que é posto a falar em seu livro Alibi’s Word (1990).

Uma tarefa mais difícil do historiador dialógico é a busca de dialogismos implícitos (item 6). Pela sua própria estrutura, um texto pode registrar explicitamente a voz do outro, como é o caso dos processos criminais e inquisitoriais. O padrão de pergunta e resposta não deixa dúvidas com relação à estrutura dialógica de uma situação, embora também tenhamos os clássicos exemplos dos Diálogos de Platão, mais monólogos disfarçados em estrutura dialógica do que qualquer outra coisa. Exceção feita ao Banquete – obra dialógica por excelência – a maior parte dos diálogos platônicos apenas forja uma estrutura de oposição interativa. Isto também podia ocorrer, é preciso ressalvar, mesmo no dialogismo inquisitorial, nas ocasiões em que “as respostas dos réus não eram mais do que o eco das perguntas dos inquisidores ‘ (GINZBURG, 1994, p.208). Tanto a percepção do “monódico” que se esconde sob a aparência polifônica (ou do monólogo que se esconde na estrutura de diálogo), como a percepção do ‘dialogismo implícito’ (item 7), eis aqui algo que requer um nível maior de sensibilidade do historiador. Com relação a este último aspecto, Ginzburg cita (dialogicamente) um texto de Roman Jakobson (1896-1982), o grande lingüista russo que foi pioneiro da análise estrutural da linguagem. Jakobson antecipa Bakhtin na sua percepção radical do dialogismo humano, e nos diz que “o discurso interior é na sua essência um diálogo, e todo discurso indireto é uma apropriação e uma remodelação por parte daquele que cita, quer se trate da citação de um alter ou de uma fase anterior do ego” (JAKOBSON, 1964, p.273). O dialogismo, enfim, pode se esconder mesmo no interior do discurso do “Eu”.

Ao sexto item de nosso quadro dialógico chamaremos de ‘crítica de veracidade dos mediadores’. Para entender este item, retornaremos agora ao texto “O Inquisidor como Antropólogo”, de Carlo Ginzburg (1989), no sentido de avançar na compreensão de certos aspectos relativos às fontes dialógicas e extrair mais sugestões de procedimentos a serem incorporadas ao nosso roteiro.
Quando lidamos com fontes dialógicas, e particularmente com fontes processuais, devemos tentar entender em um primeiro momento o nosso “filtro”, os mediadores que se interpõem entre nós e os acusados, testemunhas, e outros agentes emissores dos discursos que nos interessam em última instância (isto, é claro, quando não estamos diretamente interessados no discurso destes mediadores: compreender o discurso emitido pelo próprio juiz, inquisidor ou delegado que conduz a investigação criminal).

Admitindo que nosso objetivo é atingir a outra camada arqueológica – a dos acusados da Inquisição, a dos astecas resgatados pelo padre Sahagún, a dos saramakas catequizados pelos missionários morávios, a dos chineses relatados por Marco Pólo, a dos nativos retratados por Debret – teremos que passar obrigatoriamente pela camada mais próxima. Estes mediadores é que nos entregam os discursos dos outros, dos vários atores cujas falas constituirão a base de nosso trabalho. É preciso indagar, antes de mais nada, pelo seu interesse – destes mediadores – em relatar com veracidade o que viram, em registrar com maior ou menor rigor os depoimentos que recolheram, em dar voz aos seus protegidos, aos seus reprimidos, aos seus vencidos. Mais do que isto, será preciso indagar não apenas se eles possuem interesse em agir no plano da veracidade, mas também se eles são capazes de agir neste plano, se estão dotados para tal da necessária “utensilhagem mental”, para retomar aqui a antiga expressão de Lucien Febvre.

Vimos no exemplo de Richard Price, ao menos se levarmos em consideração as críticas que Eric Hobsbawm dirige ao seu trabalho, que os missionários morávios não estavam em grandes condições de compreender o estranho mundo dos saramakas. Compreender a capacidade do ‘mediador’ em se aproximar compreensivamente ou não de uma cultura ou prática cultural que lhe é estranha, ou ao menos lançar uma indagação sobre os níveis possíveis ou os limites desta compreensão, é fundamental para não naufragarmos em nossa viagem de exploração. Como vimos nos comentários de Hobsbawm sobre o ensaio de Price, trata-se de uma dupla compreensão: é preciso que nós compreendamos os nossos mediadores, e que em seguida compreendamos a compreensão que lhes foi possível sobre os seus inquiridos, os seus nativos protegidos, os seus saramakas, os seus “outros” de vários tipos. Sobre seus próprios mediadores – os inquisidores do século XVI – Ginzburg tem algo a dizer:


“Foi a ânsia de verdade por parte do inquisidor (a sua verdade, claro) que permitiu que chegasse até nós essa documentação, extraordinariamente rica, embora profundamente deturpada pela pressão psicológica e física a que os acusados estavam sujeitos. Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas – que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca dos pregadores, teólogos, juristas, etc” (GINZBURG, 1994, p.206).


Ginzburg expõe alguns problemas nesta interessante passagem. Fala-nos por exemplo da “contaminação”. Ainda que reconheça a ‘veracidade’ (ou a intenção de veracidade) dos seus mediadores – aspectos que já comentaremos – observa um limite a ser considerado pelo analista historiador. As perguntas por vezes, já comportam respostas, ou se abrem a certos padrões de respostas e não a outros. Um certo vocabulário que se utiliza na pergunta, já pode contaminar de alguma maneira a resposta; um certo imaginário pode passar daquele que indaga àquele que responde. Este aspecto é um limite, mas também é uma riqueza. O próprio inquisidor que indaga, talvez ele mesmo já tenha sido contaminado pelos demonologistas, teólogos e pregadores de sua época. Mesmo que não fosse, ainda assim o próprio réu pode já ter sentado no banco da inquisição com conhecimento de certas imagens que fazem parte do outro campo cultural. Quando se estabelece o espaço da não-comunicação, quando ele se vê incapaz de transmitir uma imagem ou sensibilidade que é só sua, e que não existe no sistema cultural ou vocabular dos seus inquisidores, tentará romper o espaço de não-comunicação – que de todo modo é extremamente perigoso para quem está sob a ameaça de tortura – e talvez tente encontrar junto aos seus inquiridores uma linguagem ou repertório de sensibilidades em comum, algo que percebeu no seu horizonte de expectativas ou, de modo diverso, algo que escutou no mundo externo, e que supõe ser compreensível ao inquisidor. No caso do réu, por vezes ele quer escapar dali, nem que seja para a fogueira. Seu desejo é restabelecer um espaço de comunicação. O silêncio é perigoso, e pode ser mesmo doloroso.

Não é apenas sob pressão que a contaminação ocorre. Quantas concessões culturais tiveram de ser feitas pelos astecas a quem o padre jesuíta Sahagún pretendeu dar alguma voz, quando percebiam que seu protetor não conseguia penetrar no seu mundo? As palavras também são mediadores, como as imagens. Quantas aproximações deverão ter experimentado para estabelecer uma ligação entre dois mundos tão distintos como o dos europeus e o dos astecas no século XVI. Alguns destes tateamentos para preencher um espaço de não-comunicação, com vistas a restabelecer a comunicação solidária entre o jesuíta e os nativos oprimidos, devem certamente ter ficado registrados nos depoimentos que hoje constituem a chamada documentação do “Informantes de Sahagún”. Quantas manobras discursivas, torcendo e retorcendo padrões de sensibilidade, não terão sido feitas pelos quilombolas saramakas aos missionários morávios que tentavam catequizá-los, mas que se mostravam tão ineptos para a função de mediação que neles deveria ser perseguida como a principal virtude, se queriam mesmo trazer os saramakas para o seu mundo religioso. Como confiar diretamente no missionário morávio, tomando por base a correspondência que trocava com outro indivíduo de sua mesma espécie?

Para o seu universo dialógico, Ginzburg reconhece a ‘ânsia de verdade’ dos seus inquisidores. Existe outra passagem em seu artigo que é uma das mais brilhantes formas de descrever um dialogismo que também atinge o próprio historiador.
“O que os juízes da inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que nós mesmos procuramos – diferentes sim eram os meios que usavam e os fins que tinham em vista. Quando eu estava a ler processos dos tribunais da Inquisição, muitas vezes dava por mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os seus passos, na esperança que também ele teria, de que o réu confessasse as suas crenças – por sua conta e risco, claro. Esta contigüidade com a posição dos inquisidores não deixa de entrar em contradição com a minha identificação com os réus. Mas não gostaria de insistir neste ponto” (GINZBURG, 1994, p.206)

Claro. Ginzburg também está dialogando com o politicamente correto de nosso ponto. Não fica bem espreitar por cima dos ombros do inquisidor para escutar a sofrida voz do réu, embora seja exatamente isto que o historiador acaba tendo de fazer. Mas, de todo modo, ao confessar a identificação com a ânsia de verdade do inquisidor, com o seu desejo de dar voz ao outro mesmo que para finalidades que o historiador reprovaria, é preciso também contrabalançar com a declaração de identificação com o réu. Não é possível aprovar nem os meios inquisitoriais nem os fins que se tinha em vista. Com esta frase, Carlo Ginzburg dialoga com os leitores de seus livros. Também é dialógica esta relação entre um autor e seus leitores. Mas, enfim, também não há muito que insistir sobre este ponto.

Deve-se atentar ainda, e registraremos como um sétimo item a ser considerado para a abordagem das fontes dialógicas, a identificação e análise dos ‘instrumentos e procedimentos de mediação’. A “tortura” em contexto como o da Inquisição ou das Ditaduras Militares, é um procedimento óbvio para os modelos de interrogatório violentos, e está relacionado à “assimetria entre as vozes”, da qual falaremos no próximo item. Mas há também inúmeros outros instrumentos de mediação ou intervenção que podem alterar o conteúdo ou o registro das vozes. Na documentação policial, como por exemplo nas “ocorrências”, deve-se considerar a intervenção do escrivão que anota os depoimentos, mas que nesta operação já os altera eventualmente; e mesmo um certo padrão prévio de maneiras de redigir pode estar entre os elementos capazes de distorcer as vozes, menos ou mais levemente.

Uma recomendação final é recuperar a rede de poderes, e eventualmente de micro-poderes, que se integra ao dialogismo das fontes (item 8). Tal como nos mostra Carlo Ginzburg (1994, p.208), o Inquisidor e seu Réu – embora se situem no plano do discurso como duas vozes de igual ressonância para o historiador – estão em situação de desigualdade, o mesmo ocorrendo com o antropólogo e os seus nativos ou outros informadores.Aqui aparecem situações que envolvem poderes reais e poderes simbólicos, mas que em todo o caso expõem uma assimetria entre as vozes examinadas. Há também uma assimetria entre os quilombolas saramakas e os missionários morávios estudados por Richard Price, embora seja difícil dizer quem está em posição mais confortável perante o outro. São assimetrias em que um poder não se impõe sobre a voz oprimida, tal como é o caso óbvio da Inquisição ou do poder simbólico que exerce o jesuíta Sahagún sobre os astecas já sobreviventes de uma sociedade destroçada pelos espanhóis. Entre os saramakas e os missionários morávios temos poderes e micro-poderes que se confrontam. O primeiro grupo se esquiva do segundo; este, por sua vez, acredita ter exercido algum poder simbólico, quando na verdade apenas foi empurrado para o mundo da não-comunicação. Não há poder mais sutil que o de enganar o antropólogo ou o missionário.


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Leia o artigo completo no qual este texto encontra-se inserido: http://ning.it/hhjbtC
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BARROS, José D'Assunção. “Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos” in Revista Albuquerque. Vol.3, n°1, 2010. http://ning.it/hhjbtC


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Referências:

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CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim, São Paulo: Brasiliense, 1986 [original: 1984].

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

GINZBURG, Carlo. “Raízes de um Paradigma Indiciário” In Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 143-179 [original: 1986].

GINZBURG, Carlo. “Provas e Possibilidades” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. 179-202.

GINZBURG, Carlo. “O Inquisidor como Antropólogo” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1994 [original: The Inquisitor as Anthropologist: an Analogy and its implications” in Class, Myths and the Historical Method. Baltimore: John Hopkins University Press, 1989].

MARTINS, José de Souza Subúrbio. São Paulo: HUCITEC, 1992.

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REIS, José Carlos. “Os Annales: a Renovação Teórico-Metodológica e ‘Utópica’ da História pela Reconstrução do Tempo Histórico” In SAVIANI, Dermeval, LOMBARDI, José Claudinei e SANFELICE, José Luís (orgs.). História e História da Educação – o Debate Teórico-Metodológico Atual. Campinas: Editora Autores Associados, 1998.

SOUZA, Laura de Melo. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

THOMPSON, Edward P. “Folclore, Antropologia e História Social” In As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, São Paulo: UNICAMP, 2001. p.254-255].

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