quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Tempo (2). Concepções de Tempo através da História - o exemplo do Tempo Mítico

Diversas formas de entender o Tempo foram conhecidas e expressas tanto na História (isto é, na realidade histórica das diversas sociedades humanas) como pela Historiografia (isto é, pelos historiadores). De um lado, sociedades as mais diversas elaboraram variadas representações do Tempo. De outro lado, os próprios historiadores – ao escreverem a Historiografia em diversas épocas – também conceberam variadamente a possibilidade de representar o tempo e de incorporá-lo às suas narrativas. Neste texto, examinaremos esta variedade de formas de conceber o Tempo. Nosso ponto de partida será o antigo Tempo Mítico, elaborado em diversas das antigas civilizações. Começaremos por esta indagação. Como funcionava, ou ainda funciona em diversas sociedades, o Tempo Mítico?

O Tempo Mítico, de modo geral, apresenta uma estrutura circular. Além disto, trata-se de um tempo reversível – se não através do próprio mito, que realiza o retorno em sua própria narrativa ou repetição cíclica, ao menos através do “rito”, que corresponde a um retorno ritual às origens, conforme veremos mais adiante. A passagem do tempo e o seu ritmo também são bem distintos do que se dará com o tempo linear, medido cronologicamente. De fato, tal como assinala Jean-Pierre Vernant (1973, p.71-112), com o Mito não se tem propriamente uma cronologia, mas sim uma “genealogia” .

O padrão circular acima referido e representado, alternando dois momentos, é apenas exemplificativo. Há mitos que articulam três, quatro, doze, ou mais momentos em sua narrativa cíclica. O ciclo natural das quatro estações, por exemplo, pode dar sustentação a uma narrativa mítica, ou também as fases da lua. Uma observação sistemática do céu em sociedades antigas como a dos maias ou astecas podia levar à percepção do retorno regular de determinado certo corpo celeste, tal como a reaparição de um cometa a grandes intervalos de tempo, e daí se originar uma narrativa mítica menos ou mais complexa. Um padrão bastante simples podia se inspirar na alternância natural entre o Dia e a Noite, gerando um esquema binário, como o acima representado. De igual maneira, outros modelos de movimento binário extraídos da natureza podem inspirar mitos subdivididos em dois momentos, como é o caso do vai e vem das águas do oceano, ou ainda o duplo movimento de inspiração e expiração dos seres vivos.


Sobre esta última matriz está construída a cosmogonia hindu da “respiração de Brahma”, que apresenta a idéia de que, quando o Deus expira, o Universo se manifesta, e, quando inspira, o universo se retrai e retorna ao não-manifesto. A matriz da respiração, neste caso, também pode ser articulada à matriz da oposição entre as duas fases do dia, gerando as imagens do “dia de Brahma” e da “noite de Brahma”, respectivamente relacionadas à expiração e inspiração do deus. Na primeira metade do kalpa (o “dia de Brahma” completo), o universo é criado; a certa altura, é destruído pelo Deus Shiva para que se inicie a “noite de Brahma”. Aqui, a narrativa mítica circular, articulada em dois momentos, projeta-se diretamente sobre o alfa e o ômega, sobre a questão primeira e última: a da própria criação e destruição (renovação) do Universo .


Na verdade, o Rig Veda – livro sagrado extremamente complexo que teria sido produzido na Índia durante o século XX a.C – apresenta pelo menos quatro grandes cosmogonias referentes à criação do Universo. Uma das seqüências mais simples é aquela que aparece em inúmeras outras mitologias que têm na água o seu elemento primordial. (1) Hiranyagarbha (o embrião dourado) paira sobre as águas, e a certo momento incorpora estas mesmas águas, fecundando-as. Isto produz o nascimento de Agni (deus do fogo), gerando-se em seguida o universo a partir da interação entre estes dois princípios (água e fogo). O fundo deste mito também é circular, pois tudo procede da água e a ela retorna. Aqui somos levados a pensar também na cosmogonia filosófica de Tales de Mileto, filósofo grego pré-socrático que afirmava que a água é a origem de todas as coisas e também a matéria para a qual tudo retorna, constituindo-se na verdadeira fonte do movimento e da vida no universo. A água, também aqui, é apresentada como um elemento divino, e Deus corresponderia à inteligência que tudo faz a partir da água.


Outra seqüência mítica (2) é trazida pelo mais famoso hino do Rig Veda. No princípio, não havia nem homens nem deuses. A única coisa que existia era um impulso, sem qualquer respiração: Brahma, que tinha derivado do calor. Deste gérmen em potencial desenvolveu-se o desejo, que correspondeu à primeira semente do conhecimento. A primeira semente dividiu-se então em uma "elevação" e em um "ponto baixo", gerando um princípio masculino e um princípio feminino . Nesta narrativa mítica, Brahma precede o universo e cria o mundo derivando-se do seu próprio ser. O padrão ajusta-se à já mencionada estrutura binária da respiração bramânica .


Os Vedas ainda trazem uma terceira ordem mítica, que corresponde ao (3) mito da separação do céu e da terra, no qual ocorre uma violenta divisão da totalidade primordial com a finalidade de criar o mundo. Em seguida ao caos originado por essa separação entre Céu e Terra, efetiva-se a Criação de um universo já diferenciado através da ação de um ser divino, uma espécie de artesão universal chamado Visvakarman, que dá forma ao mundo como faria um artífice. Esta narrativa mítica é apresentada pelos poetas védicos como tema relacionado à idéia da “criação-sacrifício”, e poderemos reencontrar versões da mesma em diversas outras sociedades e culturas.


Por fim, outra seqüência cosmogônica similar (4) aparece em um dos hinos do Rig Veda – o Purusasukta – e também aborda o tema do desmembramento de uma totalidade primordial, mas agora girando em torno de um gigantesco ser antropomórfico e andrógino chamado Purusa, e que corresponderia à totalidade primordial. A Criação é resultado de um “sacrifício cósmico” encaminhado pelos deuses, que resolvem desmembrá-lo para gerar não apenas a Natureza, como também a própria sociedade humana e mesmo novos deuses (o que reforça o caráter cíclico do mito): “Sua boca tornou-se Brahma; o Guerreiro foi o produto de seus braços; suas coxas deram origem aos artesãos; de seus pés nasceram os servos. Sua cabeça transformou-se no céu, seus pés na terra, a Lua resultou de seu conhecimento, o sol de seu olhar, a sua boca [já vertida em Brahma] e agora transformada em Indra e Agnie, produziu o vento da respiração [cósmica]”. Este mito, que ilustra um padrão de narrativa cosmogônica no qual a Criação é produzida pelo sacrifício de um ser divino de características antropomórficas, também pode se articular ao mito da expiração e inspiração Bramânica (já que o mito contém dentro de si a origem do próprio Brahma e de sua respiração a partir da Boca do ser primordial).


Os labirintos da mitologia indiana – inaugurados pelo Bramanismo, mas depois desdobrados no Budismo, no Janaísmo, e posteriormente em formas diversas do Hinduísmo – são extremamente complexos. Em uma das mais conhecidas versões, Brahma – deus de quatro cabeças que olha para todas as direções e que está sentado sobre uma flor de lótus – brotou do umbigo de Vishnu, o Deus que, dormindo, sonha o universo e tudo o que há nele. Nesta versão, Brahma é quem organiza os mundos (correspondendo à força criadora ativa), mas não é quem os cria primordialmente, já que os vários mundos são gerados pelos sonhos de Vishnu .


Em vista de seu poder de criar e recriar os mundos através de sua atividade onírica, Vishnu – “aquele que está em tudo” – torna-se a representação do equilíbrio, sendo o responsável pela sustentação, proteção e manutenção do universo . O ciclo de fluxo e refluxo, nesta versão, origina-se de Vishnu. Quando Vishnu expira, universos inteiros saem de seus poros, manifestam-se através da ‘ação criadora ativa’ de Brahma e são habitados; e a cada final dos tempos, no momento da inspiração de Vishnu, serão novamente sugados pelos seus poros. Este é também o momento em que Brahma se recolhe para dormir, e no qual Shiva se põe em atividade destruindo tudo pelo fogo. Shiva é o dançarino cósmico, deus da destruição que a tudo incinera com o abrasivo calor do fogo da renovação, nos instantes em que abre seu terceiro olho. Depois que o universo é destruído por Shiva, há como que um momento fora do tempo cíclico da respiração, no qual Vishnu se encontra dormindo sem sonhos e flutuando sobre o oceano primordial. Depois deste instante, quando o próximo universo está para ser recriado, reinicia-se a respiração onírica e reaparece Brahma do umbigo de Vishnu para criar tudo mais uma vez.


Ao mesmo tempo em que sonha novos mundos, Vishnu é também capaz de penetrar em todos os átomos de cada um dos universos gerados por sua atividade onírica, bem como no coração de todas as criaturas vivas que os habitam, e em todos e cada um destes lugares permanece como observador imperturbável. Por outro lado, há ainda a figura de Durga – mãe do universo – que representa o poder do sono que age sobre Vishnu no momento do interciclo entre a Criação e a Destruição . Pode-se dizer que a posição de Brahma é um pouco ambígua nesta versão da mitologia hindu, pois depois de ter criado o mundo a partir da respiração de Vishnu, deus do qual ele mesmo saíra, parece se esgotar por um instante a sua função (ao menos nos limites dos mundos já criados, se considerarmos que Brahma continua criando mundos durante toda a parte do “dia de Brahma” que corresponde à expiração de Vishnu). Assim mesmo, há aqui uma intrincada dialética a considerar, pois no panteão primordial dos deuses hindus há três aspectos manifestos: o Criador (Brahma), o Preservador (Vishnu) e o Destruidor (Shiva) . Além disto, Brahma reaparece mais uma vez entregando aos seres humanos os Vedas – livros que já trazia em suas mãos no momento mesmo em que brotara do umbigo de Vishnu .


O mito da separação violenta entre o Céu e a Terra, que apontamos como uma das narrativas míticas incluídas nos Vedas com relação à criação do mundo, também reaparece em culturas várias. Marshall Sahlins o encontrou entre os maori. O mito de criação do mundo deste povo parte da união inicial entre o Céu (ranci) e a Terra (papa). Da união entre os espaços elementais masculinos e femininos teriam nascido os diversos deuses, que depois separaram o Céu e a Terra em âmbitos distintos. Surge posteriormente um deus chamado Tane que molda uma mulher com a matéria extraída da própria Terra, para depois inseminá-la e dar origem à Humanidade (SAHLINS, 2008, p.38). Todos os homens, saídos da própria terra, a ela retornam inevitavelmente, reatualizando eternamente o mesmo ciclo.


Os mitos cíclicos, conforme documentam as pesquisas etnográficas e as fontes míticas que nos foram legadas de civilizações já históricas através da escrita, aparecem de inúmeras maneiras tanto nas diversas mitologias das grandes civilizações como em culturas mais localizadas. Entre os gregos, Gaia (a Terra) dá a luz a Urano (o Céu), que depois irá fertilizá-la. Cronos (Saturno), filho de ambos e o primeiro dos Titãs, irá romper a conjugação entre o Céu e a Terra ao castrar o próprio pai, na verdade a pedido da própria mãe, configurando um “ato edípico de substituição”, para utilizar uma expressão de Marshall Sahlins (2006, p.87). A partir daí inicia-se a segunda geração de deuses gregos, presidida por Cronos. Durante o reinado de Cronos, a humanidade teria vivido a sua “Idade de Ouro”, conforme o padrão mítico de eras progressivamente decaídas que comentaremos mais adiante. Ao casar-se com sua irmã Réia, Cronos teve três filhas e três filhos (Hades, Poseidon e Zeus). Uma vez que – em vista de seu próprio crime patricida, e também por temor a uma maldição que havia sido rogada por Urano ao profetizar que um dia Cronos também seria destronado por seu próprio filho – o deus do Tempo desenvolvera o hábito de devorar todos os seus filhos homens ao nascerem. Mas Réia consegue enganá-lo por ocasião do nascimento de Zeus (Júpiter), oferecendo-lhe uma pedra enrolada em um pano, que Cronos engoliu sem perceber a troca. Mais tarde, Zeus voltará para se vingar de Cronos, que também é levado a beber uma poção mágica que o faz vomitar os outros dois filhos (já adultos) que um dia tinha devorado (Hades e Poseidon). A partir daí, depois de vencer uma guerra de cem anos e de banir os tios Titãs para o Tártaro e acorrentar Cronos no mundo subterrâneo, Zeus torna-se senhor do Olimpo e líder da terceira geração de deuses, enquanto seus irmãos Hades e Poseidon irão se tornar respectivamente os senhores do mundo dos mortos e dos mares.


As três seqüências constituem ciclos: Uranos, que representa a geração inicial de deuses gregos, é destronado pelo filho Cronos, que será por fim destronado por Zeus . Também se articula à narrativa dos deuses gregos um mito à parte que se refere à Humanidade, e cujo padrão reaparecerá de modos variados em outras culturas: trata-se de um singular padrão mítico que encaminha uma narrativa sobre diversas eras que vão sucessivamente se degradando, e que muito habitualmente corresponde a uma perspectiva pessimista destinada a explicar a deficiente natureza humana.


No caso da mitologia grega, a degradação humana encontra seu mito maior na Teogonia de Hesíodo, um poeta que viveu em fins do século VIII a.C. Depois de descrever a já discutida narrativa relativa às várias gerações de deuses gregos, Hesíodo interpola em sua Teogonia os célebres episódios de Prometeu e de Pandora, que irão precisamente justificar a condição humana. Prometeu havia roubado o fogo divino para dá-lo aos homens, e com isso atrai a ira de Zeus, terminando por ser condenado à tortura cíclica de ter o fígado eternamente devorado por uma ave. Para os mortais, o castigo foi ardiloso: é criado um ser à imagem e semelhança das deusas imortais que irá oferecer aos homens um presente em nome dos deuses olímpicos. Epimeteu, irmão de Prometeu, recebe o presente e, ao abrir o que ficaria conhecido como “caixa de Pandora”, deixa escapar todos os males do mundo, conseguindo aprisionar apenas a Esperança.


Quando a caixa de Pandora se abre, inicia-se a decadência humana. A partir daí, Hesíodo registra quatro eras da humanidade que se degradam sucessivamente: a Idade do Ouro ficaria para trás, e se iniciariam, em seguida, a Idade de Prata, a Idade de Bronze, a Idade de Ferro. Entre a Idade do Bronze e a Idade do Ferro, Hesíodo na verdade encaixa mais uma era, a “Idade dos Heróis”. Mas isto não altera muito a idéia geral deste mito, que procura essencialmente retratar a progressiva degradação da humanidade através de sucessivas eras.

O padrão mítico apresentado por Hesíodo não é um caso isolado na história do pensamento mitológico. Muitas outras sociedades produziram narrativas similares, em geral para explicar as evidentes deficiências humanas. É assim que o imenso repertório de mitos nas várias sociedades e civilizações oferece muitas variações que envolvem sequências míticas de degradação da humanidade [continua].

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leia o texto completo em:
http://ning.it/hoEWu4
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.

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