quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Tempo

Se quisermos eleger o elemento mais irredutível da História - aquilo que faz com que este campo de saber se distingua singularmente das demais ciências humanas e sociais - dificilmente encontraremos outro aspecto que não o Tempo. Podemos também pensar na tão decantada necessidade de trabalhar com "fontes históricas" como outro traço irredutível da História, é verdade. Mas, se pensarmos bem, a própria ecessidade de trabalhar com fontes históricas é no fundo decorrente do fato de que a História sempre precisa encontrar os seus objetos através de uma incontornável relação com o Tempo. Assim, se o historiador examina o tempo passado, não há outra maneira de atingi-lo que não através de "fontes históricas" - isto é, vestígios, evidências, resíduos e sintomas deixados por sociedades de uma outra época e por processos históricos que já desapareceram.

Se, por outro lado, o historiador está empenhado em examinar o Tempo Presente - o que é também de sua alçada - não poderá se furtar à busca de relações temporais nas fontes de nossa própria época. Um olhar que não considerasse o tempo, na historiografia do tempo presente, facilmente a transformaria em Sociologia, Antropologia ou Ciência Política. "Tempo" e "Fontes" estão de alguma maneira ligados; mas podemos partir da idéia essencial de que o Tempo corresponde mesmo ao conceito irredutível da História - a instância incontornável que, se desconsiderada, descaracterizaria a História como um saber específico.

Apesar da sua importância como conceito fundamental para a História, de modo mais específico, e para a vida humana, de modo mais geral, é muito difícil definir o que é o Tempo. Santo Agostinho já expressava essa inquietação filosófica em suas "Confissões". "Se me perguntam se sei o que é o tempo, digo que sei. Mas se me exigem que o defina, subitamente percebo que não o sei". A definição de tempo, assim como a avaliação de todas as suas implicações para a vida humana ou para a realidade extra-humana, tem produzido discussões intermináveis no âmbito da Filosofia, e mais adiante tangenciaremos algumas delas. Talvez seja mais fácil definir alguns conceitos implicados na idéia de "Tempo", desdobrados da necessidade de medir ou dividir o tempo, ou decorrentes da sensação humana de passagem do tempo. Vejamos, portanto, alguns destes conceitos laterais que são igualmente importantes para os historiadores.

“Temporalidade” é o primeiro conceito importante para a reflexão historiográfica. Entramos no âmbito conceitual da “temporalidade”, e abandonamos o sempre vasto e enigmático universo das polêmicas sobre o Tempo, quando começamos a examinar as instâncias humanas, psicológicas e políticas que foram ou são agregadas às sensações e percepções que se dão em torno da passagem do tempo, ou ainda em torno das alteridades geradas pela comparação entre períodos distintos da história humana ou mesmo da vida individual.

Assim, por exemplo, quando os historiadores começam a singularizar e a partilhar o devir histórico em unidades compreensíveis – como a Antiguidade, a Medievalidade, Modernidade, a Contemporaneidade – estaremos já falando em temporalidades históricas temos aqui algo similar ao que se dá com o Espaço, sobre o qual o pensamento histórico ou geográfico pode pensar unidades de compreensão como a América, a Ásia, a África, mas também as espacialidades regionais, as espacialidades climático-naturais, ou mesmo espacialidades culturais mais amplas que corresponderão a civilizações).

“Temporalizar” (estabelecer temporalidades) é de certa maneira "territorializar" o tempo, tomar posse do devir aparentemente indiferenciado, percebê-lo simbolicamente – operacionalizá-lo, enfim. O que nos importa neste momento é a compreensão de que, mesmo no interior de uma única sociedade sujeita ao devir histórico, os modos de perceber a relação entre Passado, Presente e Futuro diversificam-se, e é este um dos objetos de estudo de Reinhart Koselleck (1923-2006) em Futuro-Passado, uma obra de 1979 na qual, em um de seus ensaios, o historiador alemão procura examinar como diferentes sociedades perceberam de modos distintos a relação entre o “campo da experiência” (o Passado) e o “horizonte de espera” (o Futuro). A estes aspectos voltaremos oportunamente.

Outra noção importante com a qual precisaremos lidar é a de “duração”, conceito que foi filosoficamente elaborado por Henri Bergson (1987, p.7-23) e que seria logo apropriado de maneira muito específica pela historiografia moderna, a exemplo da obra de Fernando Braudel sobre O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II (1949). Deve-se ressaltar que a ‘duração’ refere-se ao ritmo, ao modo e à velocidade como se dá uma transformação no tempo. O conceito de ‘duração’ – e as concomitantes sensações de variação na velocidade do tempo, independentemente da passagem do tempo cronológico (o tempo do relógio e do calendário) – remete de certo modo ao que classificaremos mais adiante como um “tempo interno” (um tempo que é sentido ou percebido subjetivamente pelo ser humano, e não meramente um tempo cronométrico). A sensação de variações na “velocidade do tempo” dá-se na verdade em função do ritmo menos ou mais acelerado nas mudanças que se tornam perceptíveis ou sentidas pelos homens, nos estados diferentes que se sucedem, ou mesmo em relação à quantidade perceptível de acontecimentos que introduzem alguma novidade ou significação diferente para uma determinada experiência humana, seja ela individual ou coletiva.

A noção de “duração”, desta maneira, faz-se acompanhar pela sensação de “mudança” (ou, do seu oposto, a “permanência”): uma longa duração corresponderia àquilo que muda muito lentamente (ou cuja mutação é percebida como muito lenta), e uma curta duração corresponderia ao ritmo rápido dos estados que se transformam mais ou menos rapidamente, mas também à sucessão de acontecimentos que se sucedem um ao outro impondo àqueles que os percebem a sensação de mudança incessante e continuada (ao invés da sensação de “permanência”, que aliás vem a ser outro importante conceito para a historiografia).

Por outro lado, devemos também ter em vista, sobretudo no que diz respeito a análises historiográficas como as do historiador Fernando Braudel, que a realidade social e humana é muito complexa, envolvendo inúmeros processos que podem remeter à percepção de “durações diferentes”. Dito de outra forma, com relação aos diversos processos que se entrelaçam na História, o tempo pode avançar em velocidades diferentes, produzindo “durações” diferenciadas para distintos aspectos da realidade histórica. É esta complexidade o que levou o historiador Krysztof Pomian, em seu livro A Ordem do Tempo, a propor a imagem de que o tempo histórico é uma “arquitetura”, e não uma “dimensão” (1990, p.326).

Apresenta-se como território para diversificadas polêmicas entre historiadores e filósofos a questão de saber como se daria este jogo de durações múltiplas, ou como se organizaria esta arquitetura de durações. Haverá alguma lógica imanente à dialética das durações históricas, ou algum padrão mais organizado na complexa arquitetura de durações gerada pelos acontecimentos, estruturas e processos históricos? Isto é, existirá um certo padrão de regularidades que permita pensar agrupadamente certos tipos de eventos ou de processos que estejam sujeitos à mesma tendência de velocidade do tempo, por oposição a eventos e processos de outros tipos, que já estariam sujeitos a outras tendências de velocidade do tempo?

Colocando em termos mais práticos, será possível dizer que o conjunto dos eventos políticos tenderia a uma velocidade de tempo sempre caracterizada pela “curta duração”, enquanto que o tempo da demografia ou das mentalidades seria um tempo necessariamente mais longo? A idéia de que cada área particular de fenômenos ou acontecimentos apresenta a sua própria “lógica imanente”, terminando por amarrar todos os acontecimentos e processos de mesmo tipo em um único padrão de velocidades temporais, parece estar na base das reflexões de Sigmund Krakauer em seu estudo sobre o “Tempo Histórico e Filosófico” (1966, p.56-58). Diante desta e de outras proposições, pode-se então perguntar se uma história atenta às temporalidades múltiplas deveria ser construída mais como uma arquitetura que harmoniza os diversos andares de um belo edifício, ou como uma sofisticada composição musical que expõe os seus temas sonoros sob a forma de uma polifonia de muitas vozes, defasadas umas em relação às outras.

As várias perguntas acima propostas não têm obviamente uma resposta consensual entre filósofos e historiadores. Braudel, em especial com a obra "O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Philippe II" (1949), tendeu a compor uma bela arquitetura de durações, através da qual todos os ritmos temporais, por mais distintos e singulares que sejam, terminam por se encaixar em um vigoroso edifício. Ou pelo menos essa foi a sua intenção expressa. Julio Aróstegui, por outro lado, ao comentar a questão dos “tempos diferenciais da sociedade” (2006, p.346), critica a associação de um único tipo de duração a certos espaços de temporalidade. Para o historiador espanhol, pode-se pensar perfeitamente em fatos econômicos de curta duração ou fatos políticos de longa duração. De todo modo, há em muitas das modernas correntes historiográficas uma tendência a perceber cada uma das grandes áreas das atividades sociais – elas mesmas sujeitas à discussão – como dotadas de uma lógica própria de mudança, de uma velocidade de tempo mais recorrente.

Às noções e conceitos de “temporalidade” e “duração” podemos acrescentar outras. Dentro da idéia de “devir histórico”, de um tempo que sugere è percepção humana ininterrupto movimento, o “evento” (acontecimento) se opõe às idéias de “processo” e de “estrutura”. Surge, certamente, uma prática historiográfica relacionada ao evento, e outra relacionada à estrutura, notando-se que o historiador deverá se valer necessariamente das duas, já que o tempo histórico a ele se apresenta sob a forma de sequências de eventos, estruturas e processos. Tal como assevera Koselleck em Futuro Passado, pode-se partir da diretriz de que o evento (uma sucessão de eventos) só pode ser narrado; e de que a estrutura só pode ser descrita (KOSELLECK, 2006, p.133). A análise de um “processo”, de certo modo, traz um pouco das duas práticas. Enfim, é preciso sempre considerar que o tempo não se apresenta à compreensão humana apenas como “devir” (como algo que se movimenta e traz transformações), mas também como “extensão” (isto é, como algo que perdura). Uma determinada “extensão” ou período de tempo, ao ser comparada com períodos anteriores, tanto parece introduzir mudanças como re-atualizar permanências, e é daqui que surgem as idéias de “ruptura”, “continuidade”, “descontinuidade”.

Se, para o olhar que examina certo ‘devir histórico’ nos limites de determinada ‘extensão de tempo’, as permanências parecem sobressair em detrimento das mudanças, pode-se começar a falar em uma “estrutura”, ou em qualquer outra metáfora que evoque a unidade. Se as mudanças sobressaem, e parecem se encadear ou se articular de modo compreensível, pode-se falar em “processo”. Tanto a permanência estrutural como o processo gradual podem gerar a sensação de “continuidade”; de modo inverso, mudanças radicais podem reforçar a sensação de “ruptura”. O historiador que compara extensões de tempo deve estar pronto para perceber tanto continuidades, como rupturas e descontinuidades. Isto porque o mundo humano apresenta-nos um tecido muito complexo, crivado de continuidades, rompimentos e recomeços (no limite, há autores que só percebem um caótico universo de descontinuidades na aventura humana).

Situados estes conceitos laterais, nosso objetivo, a seguir, será o de nos aproximarmos um pouco mais da compreensão mais direta sobre o conceito de Tempo, e do que este representa ou pode representar para o trabalho historiográfico. Consideraremos antes de tudo uma primeira divisão mais geral que tem sido evocada por aqueles que abordaram o Tempo com vistas a uma compreensão deste que é o elemento fundamental e irredutível do próprio ofício historiográfico. Seria o Tempo um elemento externo ao Homem, ou uma Criação dele?


[breve disponibilizaremos aqui o link para um artigo que discute a relação entre "Tempo e História").

(texto em construção. continua ...)


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Referências Bibliográficas:

ARÓSTEGUI, Julio. A Pesquisa Histórica – teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006 [original: 1995]

BERGSON, Henri. Memoria y Vida – textos escogidos por Giles Deleuze. Madrid: Alianza, 1987

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979]

KRAKAUER. S. Historical and Philosophical Time. History and Theory, 1966, n°6. p71-ss

POMIAN, Krysztof. L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984 [El orden del tiempo. Madrid: Júcar, 1990

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